Por Cristiane Pimentel
Como se brincassem de ciranda, folhas e gravetos percorrem o pátio na entrada do antigo prédio. O pitoresco balé, conduzido por uma furtiva corrente de ar, insinua uma atmosfera mais agradável, naquela sudorífera tarde de abril, sob as frondosas árvores que emolduram a edificação. Não fosse o compromisso que, por sinal, fora aceito sob a singular mistura entre gratidão e vaidade, talvez Nair deixasse estar-se ali, sob o refrigério natural. Todavia, ela segue, alheia a esse diminuto oásis em solo caririense, rumo àquele endereço tão familiar. Lá, a sede do curso de Medicina em Barbalha, procura amenizar o peso de uma série de enfermidades que carrega. Com as mãos repletas de palavras de pronúncia diferente, ora que não larga aquele livro de inglês, sobe o lance de escadas que expira na passagem em forma de arco.
Ousemos agora um salto no tempo e no espaço e caiamos de cheio em Sobral, uma semana depois da marcha de Nair. O afamado mormaço da região Norte ainda não anuncia; pudera, é manhã cedo. Embora o dia esteja a preguiçar, há muito os olhos de Letícia perscrutam os cantos do quarto. Vivaz, apesar da circunstância pouco favorável aos seus ânimos de menina, seu olhar corre inquirindo o mundo inteiro naquele ambiente de hospital. Com um gesto lento, envolto em bocejos, sua mãe a afaga, procurando prepará-la para mais um dia de tratamentos. Sentada na borda da pequena cama ela aquieta o corpo, mas os olhos seguem agitados. Será que se questiona, dada a magia de sua mente de criança, onde estão as fadas, duendes, dragões, princesas? Ou será que o desassossego vem do querer “sarar o dodói” e voltar pra casa? Difícil saber.
Nair e Letícia, duas pessoas que se distanciam no tempo e no espaço. Uma já senhora, a outra ainda menina; uma mora em Juazeiro do Norte, a outra, em Sobral. As duas têm, em suas vidas, pontos de similaridade para os observadores. “É óbvio que estão doentes e passam por cuidados médicos!”, clama o leitor. Mas não se apresse, querido leitor, é muito mais do que isso! Para descobrir, voltemos a 2000, ano que marca o processo de expansão do ensino médico da Universidade Federal do Ceará para o Interior do Estado.
O difícil começo.
A resolução número 5 do Conselho Universitário (Consuni), do dia 2 de junho de 2000, assinada pelo então vice-reitor, Prof. René Barreira, traça o início de uma história: consta a apreciação positiva da expansão do curso de Medicina da UFC, situado em Fortaleza, para o Interior cearense. Nela, estão definidas como sedes as cidades de Sobral, na zona Norte, e Barbalha, na região Sul do Estado; escolha justificada por serem municípios situados em polos de desenvolvimento. Além disso, foi levado em consideração o fato de ambos serem estratégicos por já possuírem uma estrutura de atenção primária à saúde, que atuaria como suporte às atividades das graduações.
Medida efetiva contra a carência no número de profissionais médicos no Ceará; política de incentivo ao de senvolvimento regional; fomento à melhoria dos sistemas de saúde municipais, incidindo na expansão do número de leitos destinados ao ensino; crescimento da rede hospitalar; democratização do acesso ao curso superior médico, uma vez que jovens de menor poder aquisitivo não teriam mais a barreira do deslocamento para a Capital como empecilho. Essas foram as benesses vislumbradas quando da implantação dos dois cursos. A euforia logo impregnou, face às possibilidades, os envolvidos, futuros alunos, professores, técnicos e moradores das cidades.
“Vinha de um processo crescente de profissionais atuando aqui que não eram formados no Estado. Os dados eram de que 50% dos médicos registrados no Ceará não haviam sido formados pela UFC. Inclusive, não se conseguia médicos para atuar em saúde da família no Interior. Então, a implantação ocorreu também com esse intuito. Foi uma atitude com certo grau de ousadia para a época, pois as condições orçamentárias eram adversas. O que valeu mesmo para a instalação dos cursos foi a determinação política, a parce- ria e o entusiasmo dos envolvidos, que foram Universidade, Governo do Estado e as prefeituras locais”, explica sobre o processo de expansão das graduações de Medicina o Prof. Roberto Cláudio Bezerra, reitor da UFC àquela época.
Um ano depois da assinatura do documento, em abril de 2001, os primeiros alunos, na época, englobados em turma de 40, acompanhavam as aulas iniciais: em Sobral, a aula inaugural foi realizada no dia 2 de abril; no Cariri, as atividades tiveram início no dia 28 do mesmo mês. Gatilho dado, o otimismo, em pouco, pelejou contra um dos maiores obstáculos vivenciados pelos componentes dos primeiros passos: as dificuldades estruturais. “O impacto que tive aqui, ainda não conhecia a cidade, o curso recém criado estava funcionando na sede de um antigo colégio, foi de muito receio, pois começamos com mil e uma difi culdades. O curso dispunha de uma infraestrutura física arcaica, em um colégio adaptado, mal conservado, com vários problemas. Tínhamos condições bem ruins de sala de aula, adaptávamos laboratórios, coisa que, aliás, fomos ter muitos anos depois”, reconhece um dos primeiros docentes do curso em Barbalha, Prof. Luis Carlos Albuquerque.
Em Sobral, o início também não foi diferente. Ainda sem usufruir de sede que acolhesse as atividades, o curso na região Norte somente pôde dar início graças à parceria entre a UFC, Prefeitura Municipal de Sobral, Governo do Estado do Ceará, Universidade Vale do Acaraú (UVA) e Diocese de Sobral, que colocou à disposição as estruturas da Santa Casa de Misericórdia de Sobral e Hospital do Coração. As primeiras aulas foram realizadas, com o corpo profissional, na época, de oito professores e apenas um servidor técnico administrativo, no Centro de Ciências da Saúde, Campus do Derby, da UVA. “No início, a gente começou a trabalhar aqui com uma grande preocupação de como dar condição para formar não apenas o médico com a qualidade que o projeto pedagógico buscava, mas também para formar a Universidade aqui, para ter infraestrutura para pesquisa e extensão”, lembra o docente e atual coordenador do Mestrado Acadêmico em Biotecnologia, Prof. Vicente Pinto. Em março de 2002 foi empreendida a mudança para o prédio destinado ao curso, construído e equipado com recursos oriundos dos governos municipal e estadual. No Cariri, as articulações para a instalação do curso envolveram a Prefeitura Municipal de Barbalha, Governo do Estado do Ceará, Universidade Regional do Cariri (URCA) e Instituto Centro de Ensino Tecnológico (os dois últimos abrigaram aulas da turma de 2002.2).
A aplicação de recursos governamentais e de verbas oriundas do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) possibilitou, ao longo da década, não apenas que intervenções físicas fossem realizadas, mas que fosse erguida uma estrutura mais adequada ao ensino médico, tanto nas expansões de Sobral quanto em Barbalha. Atualmente, a Medicina da UFC na região Norte dispõe de uma sede em estilo arquitetônico neoclássico, ocupando uma área construída de 5.721,77m2. A composição física compreende três blocos: no primeiro, estão os laboratórios. Salas de aula, gabinetes para professores, demais laboratórios, além de uma hospedaria para pequenos animais estão no segundo bloco. É ainda nesse bloco onde fica o Núcleo de Biotecnologia de Sobral (NUBIS), no qual são realizadas pesquisas nas linhas de Genética Molecular, Bioquímica, Bioinformática e Biotecnologia, com enfoque em espécies do semiárido brasileiro. No terceiro bloco estão a biblioteca e ambientes administrativos. Complementando o espaço, está em fase avançada de construção, e deverá ser entregue ainda este semestre, um quarto bloco para o prédio, totalizando mais de 7.000m2 de área construída.
Duas grandes reformas, além de ampliações, vivenciaram estudantes, professores e servidores da UFC em Barbalha ao longo de dez anos de atividades. Diferente das atribulações do começo, agora o prédio do curso proporciona um ambiente mais confortável aos seus usuários. São cerca de 2.500 m2 de área coberta, dividida em dois pisos. Fazem parte da estrutura acadêmico-pedagógica, salas de aulas e de atividades tutoriais e laboratórios. Dentre os equipamentos há ainda o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), biblioteca, laboratório de Informática e biotério (lugar onde se conservam animais vivos para estudos experimentais). Inaugurado em 2009, o biotério contém dois centros cirúrgicos experimentais, uma sala de administração, um laboratório de entomologia, destinado a abrigo e pesquisas com insetos, além de uma área ampla para hospedagem de animais.
Um dos mais recentes suportes aos estudos e pesquisas da expansão em Barbalha foi inaugurado em 18 de fevereiro deste ano, a Estação da Biblioteca Virtual em Saúde. A Biblioteca compõe a rede de Bibliotecas e Unidades de Informação Cooperantes da Saúde (Rede BiblioSUS), resultado de parceria entre o Curso de Medicina, Ministério da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde, por meio do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. Com ela, gestores, profissionais de saúde, pesquisadores e interessados possuem acesso facilitado a 19 milhões de documentos técnico-científicos gerados por instituições acadêmicas e pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ganhos não apenas em obras nesses 10 anos, mas incremento na comunidade acadêmica dos dois cursos. Dos oito docentes iniciais, nas duas localidades, hoje o número chega a 56 professores em Sobral e 60 no Cariri. As turmas de alunos ingressantes em cada seleção também encorparam: como parte das metas do Reuni a serem cumpridas pela Instituição, o objetivo é que, até 2012, ocorra a duplicação da quantidade de vagas disponíveis, isso em relação às 40 que eram ofertadas no pri- meiro processo seletivo. De acordo com o reitor Jesualdo Farias, o grande desafio para o futuro, com relação ao corpo docente, é reforçar o número de professores, em Barbalha, com regime de 40 horas semanais. “No Cariri, não temos uma quantidade necessária de professores com dedicação exclusiva e professores com doutorado. Em Sobral, apesar de menos professores, temos uma configuração acadêmica em um patamar mais favorável à pesquisa e pós-graduação do que no Cariri. Então, temos que procurar alcançar essa maturidade acadêmica, no curso de Barbalha. E quando digo maturidade acadêmica é ensino, pesquisa e extensão; hoje, a pesquisa lá é incipiente, a comunidade precisa se organizar para atrair professores-doutores com tempo integral”, expõe. Com relação às perspectivas para o curso da região Norte, Jesualdo afirma que a ideia é que o Campus de Sobral ganhe uma nova graduação voltada para gestão em saúde. “A rigor, o projeto do curso está pronto. Nós somente estamos negociando as necessidades para de- finir se vamos implantar em 2012 ou 2013, mas que nós vamos implantar não há dúvida, pois é uma demanda da região”, assegura.
Sobral – Interiorização Médica e Ciência de Ponta
Quando questionado acerca do diferencial do curso da região Norte, é sem falsa modéstia que o coordenador da graduação em Medicina em Sobral, Prof. Gerardo Cristino, enumera os feitos da expansão em 10 anos de atividades. “Somos marcados pelo pioneirismo!”, afirma em tom enfático. De fato, essa é uma conquista da qual o curso pode se orgulhar: foi a inserção do curso federal que possibilitou a implantação dos primeiros programas de Residência Médica no interior do Estado do Ceará, na Santa Casa de Misericórdia de Sobral e no Sistema Municipal de Saúde; com isso assinalou a Certificação da Santa Casa como o primeiro Hospital de Ensino do Interior cearense.
De acordo com o professor, a criação de programas de pós-graduação lato sensu, além de contribuir para a qualificação profissional dos egressos do curso, faz parte da estratégia de fixação de médicos que possam atender os municípios da região Norte. “O médico é fixado na região não com a graduação, mas com a pós, a Residência. Isso porque quando o local não dispõe de Programas de Residência, há a probabilidade de esse médico sair para estudar fora e por lá ficar. Se ele fizer aqui, cria vínculos”, expõe.
Criada em 2004, a Residência em Medicina da UFC em Sobral foi ainda a primeira do Interior do Ceará a ofertar a especialidade de Anestesiologia. Atualmente são mantidos sete programas: Clínica Médica, Clínica Médica com área de atuação em Medicina de Urgência, Cirurgia Geral, Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria e Medicina de Emergência. Totalizando 43 vagas por ano na Residência, ainda são conduzidos, em parceria com o Sistema Municipal de Saúde e a Santa Casa de Misericórdia de Sobral, os programas de Psiquiatria e de Medicina de Família e Comunidade, este último levando em conta o histórico de Sobral como cidade precursora nesse campo. “Tínhamos a necessidade de fixar o médico de Medicina da Família. Na verdade, a grande maioria dos médicos que integravam as unidades básicas de saúde era recém-formada, que não tinha a especialidade de compor esse quadro. O intuito de se trazer a Universidade para cá foi de tentar fixar o aluno aqui e a gente viu que, com a residência, aumentou ainda mais essa importância, porque a gente está formando especialistas que possam se trabalhar em um local que é muito carente deles”, explica o coordenador do Programa, Prof. Juvenal Linhares.
Até maio deste ano, o curso da região Norte havia lançado ao mercado de trabalho 194 médicos. Desse total, 45 permaneciam trabalhando em Sobral ou cidades vizinhas. Face ao número de alunos já graduados, a quantidade que ficou na região, de fato, é pequena. No entanto, levando-se em consideração não apenas a existência de programas de pós-graduação, mas de um grupo de fatores, profissionais e pessoais, que possam interferir na escolha de onde cada profissional opta por “fincar raízes”, o número pode ser um sinalizador de mudanças na concentração, nos grandes centros, de trabalhadores especializados. “Pretendo trabalhar aqui, pois o mercado local é muito mais fácil de me inserir do que o de Fortaleza. Aqui tem muita escassez de profissionais, principalmente especialistas”, comenta o residente em Ginecologia, Emanuel Pequeno.
Somadas à iniciativa da Universidade, ações do Governo do Estado do Ceará na área de infraestrutura, construção dos hospitais regionais do Cariri e de Sobral, devem propiciar um salto nessas estatísticas de médicos no Interior. “Deve aumentar o número de profissionais de saúde com a nova estrutura que o Estado está construindo no Interior. Traçamos o projeto de construir dois grandes hospitais, um no Cariri, que já foi inaugurado, e devemos inaugurar no comecinho do próximo ano o de Sobral. Além disso, estamos construindo 21 policlínicas e 32 unidades de pronto-atendimento. Não tenho dúvidas de que isso vai ter um papel importante, pois os estudantes vão ter a oportunidade de terminar o seu curso em um hospital de alta complexidade na região. Com isso vamos não apenas interiorizar a formação de profissionais, mas ter, inclusive, a fixação deles”, assegura o secretário de Saúde do Estado, José Arruda Bastos.
De acordo com o Prefeito de Sobral, Clodoveu Arruda, novas cooperações com a UFC estão sendo estudadas no intuito de promover o fortalecimento não apenas na saúde, mas em diferentes aspectos sociais do município. “A Universidade funciona como uma parceira importante para a construção efetiva do futuro. Ela eleva a consciência, qualifica as reflexões, os desejos, os projetos; é fundamental para que a gente cumpra uma agenda de desenvolvimento social, econômico e cultural da região”, destaca.
Ex-aluna de graduação e de pós-graduação da Medicina em Sobral, a ginecologista Carla de Sousa é um exemplo desse processo de interiorização de profissionais propiciado pela expansão da UFC. Segundo ela, que hoje integra o corpo de médicos da Santa Casa de Sobral, a implantação do curso na cidade vem propiciando não somente transformações positivas do mercado de trabalho local, mas também no comportamento das próprias equipes de saúde. “Acompanho o curso desde a vontade de que ele existisse. Fiz Medicina aqui porque acreditei na proposta e vim com a vontade de ajudar a construir. O curso, certamente, só veio contribuir positivamente com relação à atenção primária, secundária e terciária local. Agora, nesses últimos três anos, a gente percebe mudanças a olhos vistos nos serviços, na mentalidade dos profissionais, até porque quando a gente chegou o comportamento era outro com relação ao estudante de Medicina ou de Enfermagem. Inicialmente, havia uma espécie de rejeição, mas, hoje, estamos totalmente integrados ao serviço e não imagino mais a Santa Casa sem o estudante de Medicina”, avalia.
E não é preciso chegar à pós-graduação para que esse estudante da UFC passe a desenvolver atividades na rede de saúde de Sobral. Mesmo em semestres básicos da graduação, os alunos já começam a interagir com os pacientes através de atividades de extensão, grupos de pesquisa ou outras iniciativas. Um projeto que possibilita esse encontro entre recém-ingressantes e usuários do sistema de saúde é o Projeto Riso, que visa humanizar a estada de internação do doente, seguindo os modelos do médico Patch Adams, nos Estados Unidos, e do grupo Doutores da Alegria, em São Paulo.
Criado há quatro anos, o projeto nasceu da ideia de um grupo de alunos. Caracterizados de palhaços/ médicos, os estudantes realizam visitas semanais ao setor de Pediatria da Santa Casa, ocasião em que procuram, dentro das possibilidades do ambiente, realizar brincadeiras e divertir as crianças. “A gente acabou tentando ter o primeiro contato com o paciente de uma forma diferente. É o primeiro encontro a não se basear na ciência, mas na relação humana que você pode ter. É o branco trabalhando com o colorido, que é para tirar essa ideia de que quem está com o jaleco vai apenas fazer procedimentos dolorosos naquela pessoa que está internada”, afirma uma das fundadoras do Projeto, Cynara Carneiro.
De acordo com a coordenadora do Projeto, Profa Regina Coeli, antes desse primeiro contato, os estudan- tes passam por uma capacitação que envolve desde aspectos de higienização até temas mais delicados, como a morte de pacientes. Como destaca a docente, o intuito do Projeto Riso é de não apenas divertir, mas consolidar esse novo conceito de saúde, atento às questões socioemocionais do enfermo, entre os profissionais da região. “Os alunos têm ampliado o que se chama de saúde e o que é trazer saúde para o doente, humanizando essa assistência. Lembro-me de um episódio em que um aluno estava abordando uma criança, mas ela não se abria, não sorria, e ele tentando as mágicas, estava com todo o arsenal dele já para se esgotar, quando o menino pediu: ‘Imita um macaco?’ Então o aluno começou a imitar o macaco e o menino caiu na gargalhada. Aquilo, que pode parecer banal, surte um efeito bem interessante na melhoria daquela criança”, defende Regina.
Seguindo na linha de especialização profissional em Sobral, o Mestrado Acadêmico em Biotecnologia vem promovendo ações tanto no âmbito das pesquisas em Macromoléculas e Microbiologia Aplicada quanto na fixação de doutores na região Norte do Estado. Criado em 2007, o Programa foi o primeiro da UFC no Interior do Ceará. Dispondo de uma estrutura física de sete laboratórios e um parque tecnológico avaliado em torno de R$ 10 milhões, o Mestrado atua em parceria com a UVA e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
O enfoque dos estudos está no desempenho de substâncias, encontradas em plantas do semiárido nordestino, nos processos de inflamação e dor. “O pessoal se admira com a exuberância de uma Floresta Amazônica e de uma Mata Atlântica, mas, espécie por espécie, a Caatinga é infinitamente superior e ela é absolutamente desconhecida. Então, a gente busca nas plantas substâncias que possam ser aplicadas no controle de dor, na modulação de alguns processos, sejam fisiológicos ou sejam eles doenças”, esclarece o coordenador do mestrado, Prof. Vicente Pinto.
Integrante da Rede Nordeste de Biotecnologia (Renorbio), o mestrado possui, atualmente, 25 projetos de pesquisa em desenvolvimento. Em fase avançada de testes clínicos (testes em humanos), há o estudo da eficácia terapêutica do xarope de xambá, planta encontrada no semiárido, na melhoria da qualidade de vida para pessoas asmáticas ou com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). “Segundo levantamentos, há um número muito grande de pacientes asmáticos em Sobral, principalmente por conta de fábricas de cimento. Então, o nosso objetivo com essa pesquisa aqui é verificar se esse xarope implica na melhoria da qualidade de vida dessas pessoas. Distribuímos o xarope e, para avaliar se mudou algo ou não, buscamos saber, através de questionários, se melhorou o cansaço da dispneia desde mínimas atividades até as mais intensas”, detalha o fisioterapeuta e pesquisador do Mestrado em Biotecnologia, Henrique Linhares.
Conduzido através de parceria com o curso de Medicina em Fortaleza, o estudo conta com a orientação do Prof. Odorico de Moraes, da Unidade de Farmacologia Clínica da UFC, a UNIFAC. Integram o experimento 60 pacientes, maiores de 18 anos, do Centro de Reabilitação de Sobral. Após triagem nos Centros de Saúde da Família e seguinte apresentação dos intuitos e métodos da pesquisa, o paciente voluntário passa por uma bateria de exames para avaliação de seu estado clínico, além de passar por testes de capacidade pulmonar. Se apto, ele passa a receber frascos do xarope de xambá, que são produzidos nos laboratórios da UFC, e é acompanhado pelos pesquisadores durante 28 dias. “Cada um toma 20 ml, três vezes ao dia, durante 14 dias. Então, são 14 dias tomando e 14 sem tomar; daí vemos como era antes, durante e depois do xarope. Com os questionários, pergunto sobre a vida dele desde a hora em que ele acorda até a hora que vai dormir no dia seguinte”, explica Henrique.
Iniciada em janeiro deste ano com base científica em anteriores evidências positivas em animais, da capacidade broncodilatadora e anti-inflamatória do xambá, a fase clínica vem revelando bons resultados do fármaco também em humanos. “Apesar de a gente não saber qual é xarope e qual é placebo, quem sabe é o laboratório de Farmacologia, que nos envia os frascos, a gente tem tido depoimentos de pacientes que afirmam que, antes do xarope, tomavam bombinha três vezes por dia e agora só tomam uma. De todo modo, isso está sendo avaliado e será validado não apenas pelo o que este voluntário está dizendo, mas por todo o aparato de acompanhamento que disponibilizamos”, destaca o estudioso.
Henrique chama atenção ainda para o fato de o xambá ser objeto de estudo para mais duas pesquisas em andamento, nos níveis de doutorado e pós-doutorado, vinculadas à Faculdade de Medicina em Fortaleza. A meta é que, após a conclusão dos três trabalhos, com a confirmação das capacidades terapêuticas do xarope, ele possa ser incluso na lista de medicamentos à disposição dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). “Durante toda a pesquisa os pacientes recebem a medicação para asma, pois a ideia é ampliar as opções terapêuticas e não excluir uma. Se você me perguntar ‘O paciente asmático vai deixar de utilizar bombinha?’ Não sei se vai, mas acreditamos que vai melhorar sua qualidade de vida. Depois, se clinicamente tivermos resultados, queremos que ele possa ser utilizado no SUS”, declara.
Barbalha – Impacto nos serviços e interação com a comunidade
Um ventilador, uma rede e uma bolsa. Esse trio era tudo que compunha a bagagem do jovem Luis Pires assim que chegou a Barbalha, há cinco anos. Tão pouca quantidade de objetos talvez nem configurasse exagerado peso para o, até então, futuro estudante de Medicina do curso da UFC em Barbalha. Mas a cabeça – ah, sim! Essa deveria pesar toneladas com uma avalanche de informações, anseios e dúvidas. Da inscrição descompromissada até a chegada naquela que seria sua nova cidade, mal houve tempo e recursos para o calouro organizar sua nova vida. “Na época, nem sabia da existência des- ses cursos aqui no Interior, até que um amigo meu falou e resolvi tentar. Sou filho único e nunca tinha saído de Fortaleza, nem tinha pensado em morar fora de casa sem os meus pais. No entanto, me inscrevi e acabei sen- do aprovado. Uma grande questão foi como morar aqui, custear duas casas, pois uma só já era difícil… No começo foi muito desafiador”, rememora o estudante.
Filho de um cabeleireiro e de uma dona de casa, o acadêmico de Medicina de origem humilde, da periferia de Fortaleza, integra o grupo de jovens que, a cada ano, elege a região do Cariri como sede para seus estudos. Com uma rede de serviços e estrutura fomentados pela “onda universitária”, Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha vivem transformações em vários campos sociais, como Economia, Cultura, Educação, Política e Saúde. “Mudou o perfil da cidade com a chegada da Universidade, não somente pela cultura nova que veio se agregar à cultura barbalhense, como também pelo próprio estilo de vida. Mesmo que depois esses jovens não venham a ficar, mas, no período do seu curso, eles prestam serviço à comunidade e acabam se envolvendo com os assuntos do município”, analisa o Prefeito de Barbalha, José Leite.
Em Barbalha, onde está situado o curso de Medicina da UFC, a vocação para os serviços na área de saúde ganhou impulso com a instalação da graduação médica. O trânsito de professores e alunos instituiu uma ambiência acadêmica e científica, consolidada também com a criação do Pro- grama de Residência Médica, dentro dos equipamentos de saúde locais. Para Adria- na Medeiros, administradora de um dos maiores hospitais de Barbalha, o Hospital Santo Antônio, um dos mais relevantes impactos percebidos na saúde local foi a melhora do perfil profissional. “Contribuiu muito a vinda dos alunos, principalmente para a população. O aluno traz a parte acadêmica, de pesquisas, e isso faz com que haja uma troca de saberes entre universi- tários – que possuem conhecimentos bem atualizados – com os profissionais que aqui atuam”, declara.
Melhorias em Barbalha tanto com a especialização em serviços já existentes quanto com a implantação de novas ativi- dades. Desde 2009 funciona no prédio do curso de Medicina um Serviço de Verificação de Óbito (SVO). O local atua na comprovação de mortes ocorridas, na região, por causas naturais; em que a morte não tenha sido violenta ou em pessoas que não foram assistidas por um médico. Primeiro serviço do tipo no Interior do País, foi implantado em parceria com a Prefeitura de Barbalha e integra a rede de SVOs do Ministério da Saúde. “A importância disso é que nós vamos poder contribuir nas estatísticas de morte do Ministério da Saúde, vamos saber do que o nosso povo está morrendo e, com isso, poder ter políticas públicas de prevenção”, explana Cláudio Gladston, coordenador da graduação de Medicina em Barbalha. Até maio deste ano, 120 autópsias haviam sido feitas.
Em consonância com os novos parâmetros curriculares que preconizam maior inserção do médico na comunidade, respondendo a uma das carências da saúde brasileira, a formação de médicos de saúde da família, funciona também no curso um ambulatório de especialidades médicas. Com atendimentos de segunda a sexta-feira, no horário comercial, o local oferece as especialidades de Neu- rologia, Endocrinologia, Cardiologia, Dermatologia, Reumatologia, Pneumologia, Gastroenterologia, Otorri- nolaringologia, além da realização de biopsias e exames de leishmaniose. Segundo a atendente do ambulatório,
Rejane Felix, por dia, são consultadas cerca de oito a dez pessoas, em um ambiente que conta com cinco salas de consultório. “Uma das grandes vantagens para o paciente é que ele já sai daqui com o seu retorno agendado”, destaca.
Cada paciente que chega ao ambulatório é atendido por um docente e ainda recebe o acompanhamento de um estudante de graduação ou de pós-graduação. Como explica o coordenador do curso, a ideia de montar o ambulatório surgiu para quebrar barreiras entre academia e comunidade. “Íamos aos postos de saúde e víamos a dificuldade do nosso aluno e do nosso profes- sor de interagir com os pacientes que necessitavam de nossa ajuda. Então, trouxemos a comunidade para dentro do curso. O que a gente quer é que esse ambulatório faça parte da vida das pes- soas daqui. Na verdade, grande parte da nossa população sofre de doenças sociais como a fome, o desemprego, a desnutrição. E quando você fala em desnutrição parece que não é Medicina; Medicina é cortar, ver uma vesícula, um tumor na cabeça, a fome parece que não faz parte do nosso contexto, mas é a nossa realidade. Então, quando o paciente chega aqui, passa por uma triagem e o nosso médico residente diz para onde é que ele deve ir. Ele precisa ter o conhecimento necessário para saber o que o paciente tem e se precisar de algo mais especializado, saber enca- minhar”, comenta Cláudio Gladston.
Um novo conceito em saúde
Mas então Nair adentra o prédio da Medicina em Barbalha. O riso buli- çoso do grupo de alunos que conversa próximo às escadas, aguardando a aula seguinte, a recepciona. Sem pressa, ela caminha pelo corredor, rumo à sala de reuniões. Com a plácida expressão daqueles que não veem na espera um martírio, aguarda, sentada em uma cadeira acolchoada, até a hora de falar sobre o atendimento que recebe como usuária do ambulatório de especialidades do local. “Os médicos atendem os pacientes com carinho. Às vezes, a pessoa vem doente, sofrida e quando chega aqui é bem atendido, diferente do posto de saúde, que você chega, vai enfrentar uma fila enorme e o atendente, ainda por cima, te trata mal. Então, com o carinho que eles dão aqui, você vai até melhorando a sua autoestima, você se sente muito bem”, relata Nair Rocha.
Professora aposentada de Inglês do Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos (IMPARH), e atualmente morando em Barbalha, Nair afirma já ter passado por todas as especialidades do ambula- tório, em um ano e meio de consultas; serviço do qual não possui nenhuma queixa. “Parabenizo a UFC por esse curso aqui em Barbalha e que atende a toda essa região do Cariri. Vem gente até de Pernambuco se consultar aqui, então quer dizer que a coisa é boa. De gratidão, vou dar um curso gratuito de Inglês aos residentes. O que posso dizer é que o atendimento aqui é excelente, é number one (número 1)”, elogia.
Uma semana após a conversa com Nair, desta vez em Sobral, impossível não se fascinar com o brincar dos olhos de Letícia ao fitarem o grupo de palhaços/doutores que adentra a enfermaria pediátrica da Santa Casa. Músicas, brincadeiras e cores dos alunos do Projeto Riso quebram, em se- gundos, o desânimo por conta de cinco dias de internação da menina. “Achei bom eles terem vindo porque as crianças ficam aqui tão estressadas e isso ajuda com que elas fiquem mais tranquilas”, conta Maria José Fontenele, mãe de Letícia. Ainda que envolto em um misto de timidez e surpresa, que a impedem de expressar em palavras (seriam esses os heróis que ela imaginava?), o gesto de acompanhar a equipe do Riso até a porta da enfermaria, como quem quisesse aproveitar aquela alegria até seu último instante, é delicado e ao mesmo tempo franco. “Você gostou dos palhacinhos?” Nem precisava perguntar. Com o olhar esfuziante, é com um movimento afirmativo que a pequena responde. Rápida, logo some em meio à rotina de hospital.
Nair e Letícia, duas pessoas que se distanciam no tempo e no espaço. Uma já senhora, a outra ainda menina; uma mora em Juazeiro do Norte, a outra, em Sobral. Então, leitor, já sabe o que as une? Para além da situação de enfermidade, elas puderam contar com um tratamento enfocado não na doença, mas sim, no doente. Contaram com um cuidado humano mais próximo, com profissionais com uma formação cada vez mais direcionada no sentido de ouvir a pessoa em seu contexto geral, e esse tem sido o grande diferencial dessa década de atividades da Medicina no Interior do Estado. “O nosso modelo pedagógico segue as diretrizes curriculares fazendo com que o médico deixe de ter essa visão individualizada e veja um doente, e não um fígado. Como é que você vai entender o seu paciente se você não sabe a linguagem dele? E, realmente, na Faculdade, a gente não estava aprendendo a falar com os pacientes. Deixamos de tocar nas pes- soas, de ouvi-las, de olhá-las. Porém, essa nova metodologia que adotamos está tentando tornar o médico não somente mais próximo do paciente, como mais ético e mais humano”, confirma o coordenador do curso em Barbalha, Cláudio Gladston.